CARTA AO ENCARREGADO DE EDUCAÇÃO DO PAI NATAL

13-01-2016 13:55

 
O psicólogo Eduardo Sá na minha perspetiva dá sempre um excelente contributo para a forma como vemos e lidamos com as crianças. Portanto resolvi publicar alguns artigos feitos por ele. Estes artigos foram encontrados em várias páginas da Internet que mencionarei no final porque poderão ter algum interesse para os leitores.
 

Excelentíssimo Encarregado de Educação do Pai Natal,

 

Escrevemos-lhe, em nome do conselho de turma do seu educando, para manifestar a mais profunda preocupação pelo comportamento que ele tem manifestado em contexto escolar, com tudo o que isso tem trazido de advertências da nossa parte na respetiva caderneta do aluno. Pelo que supomos, estará sempre em viagem, já que o seu educando, quando o interpelamos a propósito de Si, nos dá a entender que estará "em toda a parte". Todavia, é com imenso pesar que não temos visto devolvidas as nossas mais sinceras apreensões em relação ao lado saltitante da atenção do seu educando, inscritas na respetiva caderneta do aluno. Efetivamente, embora ele manifeste uma alegria, quiçá, invejável - somos da opinião que um tal humor, tão contagiante e desmedido, possa descentrar os colegas da magna tarefa de aprender. E, pior - por mais que, tecnicamente, ele não perturbe a turma - receamos que favoreça alguns défices de atenção de outros alunos, mais compenetrados, que convivem de forma dolorosa com pessoas pouco "certinhas", como o seu educando, outrora descritos como "cabeças no ar". Aliás, muito nos tem inquietado esta tendência bem-disposta que ele não deixa de manifestar, havendo, mesmo, quem pergunte, aqui na comunidade educativa, que variante de metilfenidato de anfetamina ele tomará todos os dias, porque não só aprende sem dificuldades como, para além do mais, parece "voar", sempre que um apelo, uma dúvida com mais arestas ou um simples problema lhe são colocados.

 

Há, todavia, no seu educando, uma irreprimível tendência para uma paixão intensa com que se dedica a uma qualquer tarefa, parecendo-nos a nós, conselho de turma, que estaremos em presença de um hiperativo numa variante que mais o aproxima da proatividade, e que surge muito em alunos que, de forma incansável, se envolvem nas matérias escolares e nos seus sonhos, tudo ao mesmo tempo, e que, pela vida fora, mesmo quando têm um relação dolorosa com a escola, se transformam em inequívocos empreendedores.

 

Refira-se - a montante - que, embora nos sensibilize o lado atilado e asseado do seu educando, nos inquieta a forma como ele surge em contexto escolar, insistindo em vestir de vermelho, todos os dias, quer na sala de aula como no âmbito da respetiva educação física. Ora, por mais que tenhamos tentado discernir se isso deve ao clube do seu coração - se bem quem não seja visível uma águia, ou uma pantera negra sequer, estampados no vermelho-Natal da sua roupa - e se bem que o tenhamos vindo a sensibilizar para a benevolência do uso de uniforme (mas, de preferência, o da nossa instituição!), a sua obstinação em relação ao gorro, às calças e ao casaco vermelho é tal que nos deixa a todos quase sem argumentos, se bem que haja cada vez mais vozes que, insistentemente, reclamem por medidas disciplinares. Surgiu, aliás, há pouco, a proposta, sobre a qual iremos meditar, de punir este ato de indisciplina com atividades cívicas como, por exemplo, cuidar de crianças. Mas parece-nos que isso seria interpretado por ele como uma atividade lúdica (como, habitualmente, parece ser levado a entender as nossas repreensões). A seu tempo, iremos ponderar sobre o formato de medidas repressivas e penalizadoras que o tornem mais próximo dos seus outros colegas... mais "normais". Temos, todavia, hesitado noutras medidas disciplinares - como uma suspensão, por exemplo - por recearmos que ela fosse sentida como se fosse "o céu". Sobretudo depois de, há não muito tempo, o seu educando ter ido de castigo para a biblioteca - que nos pareceu ser o local de punição, por excelência, para os alunos para quem a fantasia carece de limites e de uma "gramática" muito própria - retirando daí benefícios de leitura que um aluno não devia considerar. Para mais, quando está de castigo!

 

Seja como for, queríamos pedir-lhe que sensibilizasse o seu educando em relação ao tom e à forma, pouco urbanos, do seu riso. Rir de boca aberta, com estrondosos "Oh! Oh! Oh!", se bem que sejam expressões de espanto que nos sensibilizem, não se afigura como uma atitude com o seu quê de cavalheiresco. Acresce, se nos permite, que - porventura devido à discrepância de idade entre o seu educandos e os seus colegas - seria de esperar que a comunidade escolar encontrasse nele um tutor, digamos assim, para os "coleguinhas" mais jovens, e não tanto um chefe de turma que, por vezes, se torna desconcertante - mesmo em função de toda a nossa benevolência - que põe os colegas em alvoroço quando lhes fala de presentes e lhes conta histórias (muito pouco reais, diga-se!) de encantar.

 

Por mais que nunca questionemos a bondade das avaliações escritas e dos exames, de modo geral, somos, amiúde, confrontados com pequenas confusões dos mapas de exames que ele vai tendo e que nos preocupam. Quando, para todos nós, os exames seriam em junho, o seu educando insiste e insiste que eles serão em dezembro. O que, não sendo uma estereotipia de valor clínico preocupante, parece revestir-se ou de uma teimosia que roça a insolência e a afronta, ou uma confusão de espaço e de tempo que, em muitas circunstâncias, é acompanhada por outras necessidades educativas especiais que, de forma abnegada, se bem que inconclusiva, temos vindo a avaliar.

 

Aliás, estranhamos que, em devido tempo, não nos tenha dado autorização para que o seu educando fosse encaminhado para uma avaliação psicológica, para a educação especial ou para um plano educativo individual, de que muito carece. Em primeiro lugar, porque estamos a falar de um aluno com idade muito próxima dos educandos do antigo ensino recorrente. Depois, porque se torna gritante a necessidade de uma intensa educação ecológica, já que a forma como ele se dedica às renas e as parece pretender transformar num objeto voador não identificado, nos sugere um quadro grave, onde biologia, física e mecânica se emaranham assustadoramente, de uma forma que não conseguimos descortinar. Finalmente, quando ele insiste em chamar-se Pai, de nome próprio, e, na ficha individual do aluno, não só coloca como freguesia de naturalidade o lugar do Natal e, por mais que seja terno e dedicado em relação a Si, deixe, no lugar do progenitor, um espaço em branco (que sugere ser filho de um pai incógnito), somos levados a vacilar entre apresentar o caso do seu educando a uma comissão de proteção de pessoas em perigo ou decretar a respetiva insanidade. Fossem outros os resultados que ele vai obtendo e assim já teríamos feito!

 

Dir-nos-á - e concordamos - que o seu educando é dado ao voluntariado. E que atos generosos, de dádiva, como esses, merecem apreço. É verdade. Todavia, esta escola tem responsabilidades sociais que nos levam a ter uma atenção muito dedicada aos rankings, e aos quadros de mérito e de excelência. E aí, não consta que estejam alunos amigos da risota, da cabeça nas nuvens, e que sejam geniais na fantasia e engasgados na matemática. Ressalve-se, a propósito desta até de conhecimento, que o seu educando conta, esplendorosamente, de forma regressiva, sobretudo quando se trata de saber quantos dias faltam para o Natal. No entanto, a obstinação que parece ter para com estes temas recomenda um alerta: como seria possível que entendêssemos a forma trapalhona como ele se imagina a fazer felizes as crianças, para mais, distribuindo presentes que caem por chaminés (quando, a bem da verdade, as residências portuguesas dispõem, cada vez mais, de recuperadores de calor e de exaustores)? Estará este lado fantasioso e sonhador em linha com o mundo tecnológico e inovador em que vivemos? Não poderemos estar, antes, em presença de um educando com o seu quê de mitómano, em nada adequado aos desafios que o futuro a todos nos traz?

 

Em virtude do exposto, dirigimo-nos a Si, na esperança de, já que parece estar em toda a parte, não deixe de nos dar o privilégio da sua presença nas reuniões de pais. Pedindo-lhe, denodadamente, que não destoe de muitos outros pais que, ao contrário do que diz por aí, não são pessoas que adoraram ir para a escola, que tiveram, sobretudo, professores bem-dispostos e brincalhões, e que não terão sido tão bons alunos ou, mesmo, tão exemplares como eles passam a vida a dizer. Como sabe, melhor que ninguém, e mesmo que isso possa ser um bocadinho verdade, há mentiras piedosas de pais que Deus não castiga e que, bem geridas, nos encaminham (a todos) no caminho da salvação.

 

No entanto, relembramos que neste período de Natal o seu educando tem uma quantidade apreciável de trabalhos de casa com os quais não deve deixar de cumprir. Estudar não tem de ser "o céu", como bem sabe. E é para este agrupamento escolar fonte de imensa preocupação a forma muito pessoal como ele insiste em resolver todos os problemas, pouco adequada às normas e às metas curriculares que todos temos a estrita obrigação de não questionar.

 

Seja como for, apelamos ao seu empenhamento para com as nossas preocupações. Não deixando de Lhe recomendar a melhor das atenções para com o seu educando que, embora destoe num conjunto de pequenos-nada (e isso dê, até, um ar picaresco à nossa escola), nos preocupa por poder sugerir uma vocação realmente inclusiva (que não devemos, nunca, levar tão à letra). Daquelas "vocações" onde, hoje, possam caber alunos que se vistam de vermelho e, mais tarde, outros alunos, mais inquietantes, que (independentemente da idade) sejam levados a acreditar - por mais que lhes expliquem que a Leopoldina é quem cuida das prendas e que a Lapónia não surge referenciada nas cartas geográficas como o país do Natal - que, realmente, o Pai Natal existe. E, pior, receamos que esse furor cresça e eles acabem todos por acreditar em personagens pouco credíveis - de ficção, mesmo - como o Pai Natal. Que lhes deem uma ideia facilitista de mundo, a ponto de serem levados a imaginar que os presentes, afinal, não são consumismo mas magia e amor.

 

Independentemente da sua confissão, permita que lhe deseje, em nome desta comunidade educativa, a Si e à Sua família, um Feliz Natal.

 

 Eduardo Sá

 

Texto retirado de : https://www.leyaeducacao.com/z_escola/i_246